O jogo transcorria numa monotonia: Brasil 0 x México 0. Sentávamos espalhados nas cadeiras, em volta de uma enorme TV, comendo aperitivos e aguardando o churrasco ficar pronto. Um clima de confraternização, típico de brasileiro na Copa do Mundo. O jogo estava lento, a bola não chegava à rede e, quando parecia que entraria, era barrada por um goleiro mexicano sem sombreiro.
Eu, entediada, levantava-me toda hora para ir fumar na varanda – afinal, quem é fumante sabe que, ao acender um cigarro, o tédio vira fumaça. Às vezes, vibrávamos com alguns passes, contando com as habilidades motoras de Neymar, mas assim como o tédio, que virava fumaça, a esperança se tornava frustração.
Ainda no primeiro tempo, Pedro, com uma folha na mão, me surpreendeu: “Mãe, posso ler uma redação que tive que fazer para a aula sobre futebol?”
Antes de ser uma torcedora, devo ser uma mãe atenta e paciente – até mesmo numa disputa de Copa do Mundo -, e respondo: “Posso ler, filho? Eu prefiro. Assim, presto mais atenção.”
Ele, entediado pelo jogo, diz que tem que ler para dar a verdadeira entonação do texto. Aceito. Num átimo, desligo-me do jogo e foco todos os meus sentidos para escutá‐lo.
Numa ânsia de querer ser escutado, fala rápido demais; peço que volte ao começo da frase, respire e leia calmamente, sem pressa, afinal o jogo está lento, demorado para passar. Recomeça, agora mais tranquilo.
Percebo que sua gramática está melhor, seu vocabulário mais extenso. Comprovo que minhas intervenções repetitivas em seus textos quanto ao uso da vírgula surtiram efeito. Fico orgulhosa dele, de mim e da escola.
Finalmente, ele está entendendo que na vida sempre existe uma vírgula. Suas considerações são práticas, pragmáticas, sem dar importância aos valores estéticos de um “futebol arte”: o importante é ganhar, colocar a bola na rede, marcar gol, ou seja, resolver o jogo mirando a rede. Foco.
Ele lia, eu analisava: havia bons argumentos para justificar a falta de “arte” no futebol atual. Entre uma palavra ou outra, parávamos para ver se Neymar ou um atacante mexicano marcavam um gol… Entretanto, nada acontecia. Ver Felipão nervoso era, sem dúvida, o melhor daquela partida.
Voltávamos ao texto e ele continuava a argumentar. Em alguns momentos, eu imaginava o professor discordando da maneira competitiva com que Pedro vê o esporte. Porém, para minha surpresa, aquele menino, meu filho, colocou uma frase da bíblia para justificar um erro de um certo goleiro da Copa de 1950.
Meu coração disparou! Já não entendia mais nada! Como um menino de pais agnósticos menciona Deus num texto sobre futebol? Ele acredita em Deus?! Pior… acha que Deus é brasileiro?
Procuro me acalmar para que ele não considere meu espanto uma decepção. Mas ele percebe. Diz: “Você não gostou muito do final, né? É porque eu falo de Deus, mãe?”
Respondo – fazendo um gol sem drible nem passe: “Acho que usar argumentos religiosos não é válido. São argumentos frágeis, como fumar para espantar o tédio num jogo chato de Copa do Mundo”.
Ele me olha, concorda com a cabeça e diz que vai refazer o texto. Eu digo que não refaça. Ficamos abraçados vendo o resto do jogo. Em lances perigosos, gritávamos, falávamos palavrões. Nenhum lance, drible, ou quase gol, foi tão espantoso como ouvi-lo falar de Deus.
Porém, no seu texto algo me aliviou: existe nele um certo tom darwinista, o forte vence o fraco. Ao menos, ele não mencionou Adão e Eva…